Brilhos, fantasias, e muita esperança.
Em quê?
A nossa mente prepara-se para os dias de Natal, para a família e anseia por um lar quente.
Boas Festas.
" A destruição das minhas certezas não me destruiu a mim. A estabilidade vem de dentro, não de fora..." Lucille Clifton
Se houvesse mais tempo nos dias, estaria mais satisfeita. Ficava mais tempo na cozinha, e tratava dos meus vasos de ervas aromáticas. Mas, no verão fiquei sem elas. E o meu manjericão morreu na semana passada. Ontem meti no forno duas maçãs reinetas. O pau de canela, o pacote e meio de açúcar e o Porto fizeram o resto. Tu gostaste muito. Hoje comprei mais maçãs, mas daquelas mais reles que vêm em sacos de quilo e meio. São mais baratas: é que hoje cometi duas extravagâncias, e agora tenho remorsos. Uma delas é um livro da Taschen sobre ilustração urbana, para a Zá; a outra não digo. Quando vires, logo saberás.
Irrita-me o trânsito demorado. Fico para morrer. Até choro de tantos nervos. Tu não compreendes, porque é raro passares por isso. Enquanto dormes, ando eu a gastar embraiagem na circular de Coimbra, num esforço para chegar a horas ao serviço.
Quando o dia acaba, ou seja, quando chego a casa, só quero ficar esticada na cama. O quarto desarrumado a meia luz, e eu ali a esquecer-me das horas. Os dias passam tão depressa; parece castigo. Parece que a vida quer chegar a um momento qualquer, que eu ainda não sei; ou então está testar-me para ver se consigo acompanhá-la. Eu acho que não. Pouca resistência, fraca rês. Ontem ela disse-me que tinha tudo para acreditar em mim, e que metesse a depressão num certo sítio: mas, como é que eu posso acreditar se os bolos não crescem?
Por quê perder tempo com distracções supérfulas? O que faz o tempo? Avança. Nunca espera. Vamos com ele, ou ficamos na estação. Virá o próximo comboio? Quando? Se vier, levar-nos-à para onde? Fosse eu o maquinista, e estava o problema resolvido. Mas não, finjo existir. Oculto-me como fazem as donas de casa, atrás dos programas da manhã , dos da tarde e, por fim, das novelas. E mais tarde, nos lençóis, e no marido. Fazem-se corpos presentes. Fazem-se etiquetas, para colar onde é preciso identificar uma gaveta no meio de muitas.
Gera-se a confusão no peito. Aflijo-me de repente. Sinto o trepidar do comboio a aproximar-se, mas vejo-me cega e, desorientada, procuro alcançar a porta para a saída! Mas, já tinha passado; passou, correu, parou? Não vi, nem senti. Só a aflição.
Passou. Morreu. Não vale a pena. Perdi-o, ao tempo. Como se pode perder uma coisa tão grande? Estava cega. Mal vejo. Sufoco, perco-me nas paredes. Tantas paredes! Tantos tropeções, tantos buracos, estou sempre a cair, o pé pisa em falso!
Sento-me, não sei bem onde. Sento-me, sinto uma paz esquisita. O pensamento descansa, e desconfia. Ergo a cabeça para tentar perceber com a pele o que se passa à volta. Não sei onde estou: volta a aflição. O tempo agita as árvores, consigo ouvir. No chão, sinto-me quente, mas assustada. Volto o rosto para dentro. E fico aqui, para aqui. Até que o comboio passe outra vez. E à espera que a cegueira se dissipe.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.
- Fernando Teixeira de Andrade - 1946-2008