quarta-feira, 15 de outubro de 2008

evasão

Canta alto e descalça os sapatos.
Chega a casa exausta; num último esforço, sobe as escadas, pensando em mergulhar numa banheira de espuma.
Ouvem-se os carros lá fora a passar velozmente, as buzinas, os semáforos a apitar alto, os saltos altos das senhoras a correr nas passadeiras, o movimento dos sobretudos e o bater das primeiras gotas largas de chuva nas chapas metálicas..., todo o som aumentado no silêncio da casa.
Abriu de repente a torneira sonora da banheira. Enquanto a água corre já quente, liga um botão qualquer e uma canção anula a vida lá fora. Vinha com o desejo dessa música, e continua a cantar.
Espalha ao acaso bolinhas de sal, no fumo quente da água.
Tanta espuma branca cobre o seu corpo. Afunda-se numa água preguiçosa e como que adormecida, esquece a canção. Olha lá para fora. Os prédios são muros erguidos ao céu. Hoje não reparou na chuva, nem no frio, nem nas folhas que voavam pelas avenidas, porque nem reparou nas árvores.
No cinzento da cidade traçam-se inúmeras linhas vermelhas, em múltiplas direcções, as que os carros tomam, e não se sabe para onde.
Olha de cima a nuvem que vai escurecendo as ruas, e fica absorta no movimento das pessoas. Olha cada expressão, cada roupa, os sapatos, as mãos, o andar, a solidão.
A música ficou sem som, tudo se move devagar, as caras alienam-se umas das outras, e ela aliena-se de si mesma. O ruído do anoitecer volta à casa. E ela, pensativa, deixa-se ficar.